Presente de Carnaval


Carol Canabarro

— Ué, a Simone não vai? Tá de bico por que você chegou se trupicando ontem? — Quinho dispara, assim que Ane entra no carro.

— Lógico que não. É por causa da dinâmica, Natal e Ano Novo foi do mesmo jeito — ela explica tirando o chapéu verde da cabeça.

— Saquei, e você tá de quê? Duende? — ele pergunta, dando puxadinhas na manga da blusa, também verde, da amiga.

— Sorte, seu tonto. E você? — Ane franze os lábios e diz aguda — Vai à paisana?

— Não, vou fazer surpresa.

A Sorte gargalha, Quinho é sempre uma surpresa.

Durante os dez quilômetros que os separam do destino, ele incendeia a paciência de Ane dizendo que ela não precisava os ter atrasado indo para a academia no meio do feriado. Na carona, ela apaga a ansiedade do amigo explicando que, depois de ter virado avó, resolveu cuidar de si. Quer ver o neto se formar. A resolução veio depois de ir ao supermercado e ter ficado dois dias entrevada.

Seu Ricardo é quem abre a garagem com um pedaço de pau na mão.

— Entrem, entrem, o povo tá lá nos fundos.

— Fomos os últimos? — Quinho coça a garganta e Ane alisa o braço do amigo na tentativa de controlar o incontrolável.

— Não, a Clara se libera daqui meia hora. Sabe como é, o único lugar nessa época que recebe mais gente do que bar, é farmácia.

Eles concordam apertando as bochechas, elencando as toneladas de engov, plasil e latex que precisam ser vendidas.

— E esse tronco aí, é para quê? — Ane desiste de frear a língua destravada de Quinho.

— A coroa tá apertando aqui — Seu Ricardo fingi pressionar as têmporas sem cabelo.

— Ah, entendi, Rei de Paus! — Criativo o dono da casa, ela pensa.

Em volta da piscina, eles encontram Celo com camiseta da Copag. Mulherengo como é, faz sentido ele querer todas as cartas do baralho para si, Ane teoriza. Sentados em cadeiras desbotadas da Brahma, estão Agner e Paula com chapéus de naipes, provavelmente comprados de última hora, mas valendo, a Sorte elogia.

Pedro mexe no celular, as fichas penduradas colorem o pescoço. Laura, enrolada em tecido felpudo verde, entrega o tablet para o filho e vem cumprimentá-los. Se apresenta como mesa para os recém-chegados, que custam a compreender sua fantasia. E Vico, está de all in, ela completa a descrição familiar.

— Com certeza seu filho vai ganhar. — Ane abraça o macio da blusa.

Lia os recebe no meio do caminho, vestindo um sanduíche de Ás de Copas. O Rafa, na bica da chopeira, está de Ás de Espada. Ane comenta com a organizadora que a ideia de juntar o Carnaval com o aniversário do namorado foi ótima.

— E não é? Tudo para homenagear o melhor jogador de pôquer do mundo — Lia diz balançando o corpo de um lado para o outro e depois pede — Môr, paga um chopp pra Ane e pro Quinho, por favor?

Os outros convidados da folia se aproximam.

— Tati, mulher! Você veio de Maria Navalha? E o Duda tá de quê?

— Zé Pelintra — responde a imitação de pomba-gira, fazendo referência com o chapéu — Mas não se preocupe, pedi autorização.

Bom mesmo, como mãe de Santo, Ane reforça que entidade não é fantasia. Não é por ser Carnaval que tudo vira brincadeira.

— E tua sogra, Lia? — Ane se volta para a amiga.

— Tá lá dentro com a Beta, muita muvuca aqui fora, elas vêm só para os Parabéns.

As sinapses de Ane percorrem um caminho gasto de tanto ser feito. Beta, Paula e ela são as únicas negras na festa. Uma delas, trabalhando. Em seu íntimo, a Sorte gostaria que o mundo fosse diferente.

— Simone não vem? — Lia pergunta lhe entregando o copo.

— Dinâmica — Ane fala antes de encher a boca de cerveja.

Ela seria a quarta negra, mas essa o capitalismo prendeu dentro de quatro rodas, a Sorte divaga.

— Não pode beber sem brindar, são sete anos sem transar.

Rafa bate seu copo no de Ane, antes que a bebida gele sua garganta. Ela parabeniza o aniversariante com beijos aéreos para não amassar o sanduíche de Ás. Clara chega, desfantasiada.

— Já apagaram as velhinhas?

— Tem que estar à caráter, Clara. — Lia ergue o braço para direita, tentando contrabalancear os efeitos do álcool, pega tinta guache e começa a desenhar losangos vermelhos no rosto da farmacêutica — Você é um diamante, amiga.

Rafa sai de perto da chopeira e vai buscar a mãe na sala. A cuidadora, sem fantasia mesmo, empurra a cadeira de rodas até o pátio. Dona Gina está com chapéu de Joker.

— Não tem coringa no pôquer, né, Rafa? — A língua de Quinho sempre mais rápida do que o cérebro, Ane não cansa de se surpreender.

— Não, mas é que ela pode ser o que quiser. — o aniversariante acarinha a mão imóvel da mãe.

A Sorte dá dois tapinhas nas costas de Lia. Ela, que também enfrentou a doença da mãe, sabe que não é fácil lidar com a situação da sogra. Ane lembra do seu neto e reforça para si a promessa de continuar na academia até vê-lo de toga.

— Agora que estamos todos aqui, vamos ao que interessa — Lia começa a arrumar o bando.

— E você, Quinho? Cadê a fantasia? — Alguém se dá conta.

Quinho tira a camiseta e mostra os mamilos tapados com micro corações de purpurina.

— Puta merda, Marquinho! — Seu Ricardo esconde o rosto.

A risada é tão generalizada que o chão treme.

— Gente, precisava de algo que remetesse à temática e desse para entrar na piscina.

Em uma rápida votação, os peitos brilhantes ganham o prêmio de melhor fantasia. Lia arruma a mesa de bar no meio do quintal e acomoda o bolo sem velas.

— Esqueci de comprar — fala pedindo um isqueiro emprestado para fazer as vezes de vela.

— Adoro torta de negrinho e branquinho — diz Celo entregando o acendedor.

Ane sente seu sangue correr para os punhos.

— Não fazem mais dessa, por isso comprei de brigadeiro e beijinho. — Lia corrige o irmão.

Ela é avoada para algumas coisas, mas pelo menos isso não deixou passar, Ane pensa, piscando demorado e relaxando os dedos. Cantam os Parabéns, como crianças que recém aprenderam a falar e o Com-quem-será feito coral da USP, para pressionar o Par de Ás a trocar alianças.

A campainha toca. Zé Pelintra abre o portão. As pupilas de Ane se dilatam e as pálpebras se contraem, em parte pela visão cansada dos anos, em parte pelo que presencia. Ela veio! Simone chega a tempo da foto, contando que deu um gás nas corridas para vir comemorar com os amigos. Em poucos segundos, Lia entrega uma cerveja para a namorada de Ane. Como eles enchem tão rápido esses copos, a Sorte se pergunta.

— E essa roupa toda rosa, é fantasia de quê? — Lia questiona Simone.

— Fácil, se a Ane está de sorte, que outra coisa um jogador de pôquer precisa para vencer na vida? — O braço de Simone está enroscado na cintura de Ane.

Lia espalma a mão vazia de copo e diz pouco convicta:

— Inteligência?

A Sorte pinta um sorriso enigmático, ela sabe a resposta, mas mesmo assim se deleita ao ouvir Simone responder:

— Não, mulher, claro que não. Ele precisa de amor.


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Carol Canabarro

E-mail: carolinecanabarro@gmail.com

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