Até quando?


Carol Canabarro

Como pode ser tão perfeita? foi o comentário mais ouvido no corredor do hospital quando Bruna nasceu. Os pais, de famílias prósperas, seguiram o protocolo: providenciaram fotógrafo, charutos e mimos feito a mão para as visitas. A primogênita desconheceria sofrimento, planejaram Magno e Ruby. A vida, como sabemos, tinha seus próprios planos.

Em turnos de oito horas, as babás-enfermeiras revezavam os cuidados da menina. O pai retomou os trabalhos na semana seguinte, a mãe esperou completar um mês de vida da filha para reassumir a presidência na empresa do casal. Ficaram sob responsabilidade das avós as orações e bênçãos diárias. Bruna aprendeu com elas a respeitar e amar as divindades, a pedir proteção e a agradecer, com reserva é claro, para religião não ser motivo de constrangimento no meio que frequentavam.

A menina cresceu fluente no português e no inglês. Cogitaram mandarim, mas faltava mão-de-obra especializada. Na escola, recebeu educação formal e formalmente olhares enviesados. Sua presença era sempre motivo de surpresa ou chacota. Os convites para festinhas eram escassos, bem como as presenças dos coleguinhas no próprio aniversário. Bruna refugiava-se no convívio familiar, perto dos seus. Os pais reforçavam os laços com os antepassados, sob os ombros deles nos tornamos capazes de ir mais longe, diziam.

Namorado nunca teve. O que não significa não ter se apaixonado uma ou cinco vezes. Os lábios carnudos, as pernas torneadas, as respostas afiadas e persuasivas não eram o suficiente para conquistar rapazes. Sempre havia uma Catarina entre ela e o pretendente. Fez da solidão, solitude. Antes só do que mal-amada.

Estuda minha filha, estuda, era o mantra dentro de casa. Quero fazer moda, ela respondia. E assim fez. Nova York? Paris? Optou por Milão. Embarcou para Itália tão logo os dezoito anos bateram na porta. Vida nova, velha Europa. Penou em dobro. Era como se todas as pessoas do mundo tivessem os mesmos olhos acusadores que perguntavam sem dizer, o que ela faz aqui?

Bruna revidava: pesquisava o triplo, acumulava madrugadas e lia até entupir as orelhas. Ser melhor que os outros não era opção, mas necessidade. Ao final do curso, por insistente competência, galgou lugar nas passarelas. Os tutores não puderam fazer vista grossa. A coleção apresentada na Itália, repleta de referências das suas origens, carimbou o passaporte para as próximas temporadas em Nova York, Paris e São Paulo.

Tornou-se referência, aclamada internacionalmente. Bruna correu o mundo e até hoje, agora com mais discrição, mas sem uma gota a menos de discriminação, é perseguida pela pergunta: como foi que essa preta chegou até aqui?

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Carol Canabarro

E-mail: carolinecanabarro@gmail.com

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