Levada pela vida


Carol Canabarro

A previsão da chegada do terceiro ciclone extratropical ao estado, colocara toda nossa divisão em alerta. Sabíamos que a noite seria longa, fria e molhada, o mais não se podia prever. Eu estava a caminho do Corpo de Bombeiros quando fui destacado para o chamado na Rua Costa do Rio.

O acesso as casas foi feito de barco, uma vez que as águas do Rio Maquiné extravasaram suas margens. As residências simples não resistiriam muito tempo à enxurrada, por isso nos dividimos. A casa com telhado de zinco, quase completamente submersa, me foi destinada.

Preso por uma corda, arranquei parte do teto e chamei por sobreviventes. O barulho das águas empurrando as paredes e caindo sobre o metal dificultavam ouvir qualquer resposta. Entrar não era uma opção, em breve a casa poderia ceder e eu seria arrastado rio abaixo dentro dela.

— Tô ouvindo um miado — disse para o piloto, apontando a lanterna para a outra extremidade da casa.

Quando o brilho da luz refletiu nos olhos do animal, meu sangue transbordou adrenalina. Foi tudo muito rápido.
Dei a volta por cima do telhado, abri um novo buraco e a encontrei. Com uma das mãos ela se apoiava na parte superior do armário e a outra equilibrava o gato e um pequeno objeto. Sem forças e quase submersa, a mulher me ordenou que os pegasse. Primeiro a senhora, respondi. Ela balançava a cabeça de um lado para o outro. Na hora achei que era para se desvencilhar da água, só depois compreendi.

A contragosto, retirei o animal, coloquei-o em cima do telhado. Segurei o punho livre e a puxei. O movimento abrupto fez a casa tremer. Ela se soltou do armário e me entregou um porta-retratos. As paredes cederam. Nossas mãos se desencontraram, a expressão de serenidade nos seus olhos foi nossa despedida. Seus últimos pertences ficaram comigo.

No dia seguinte, fui até o ginásio onde os desabrigados estavam alocados, para buscar informações sobre Dona Miriam, a senhora da casa de zinco, e tentar entregar o gato à mulher da foto. Os vizinhos não tinham muitas informações sobre a moradora: “Ela vivia sozinha. Nunca recebeu visitas e olha que moro aqui há quinze anos. Era meio antipática, ranzinza até. Falava pouco. Não tinha ninguém”.

A foto parecia um beco sem saída. A moça da foto era uma desconhecida. Até que um menino disse:

— Não conheço a pessoa, mas ali no fundo da foto, dá pra ver a padaria do Seu Miguel, em Morro Alto. — Decidi ir até lá na minha próxima folga.

Seu Miguel do balcão, com um lápis atrás da orelha, reconheceu Gabriela, “mora do outro lado da praça”. Mas não sabia de nenhuma moradora da cidade de onde eu vinha, muito menos do gato que eu levara a tiracolo. Me dirigi até a residência indicada pelo dono da padaria.

Apertei a campainha e pouco tempo depois ela apareceu. Tal qual a foto. Escolhi as palavras com cuidado para relatar a morte de uma pessoa querida. Pelo menos era o que eu pensava. A garota pediu para ver o retrato.

— Sim, sou eu mesma. Mas não conheço ninguém de Morro Baixo. Sinto muito. Éramos só eu e minha mãe. E ela faleceu há dois anos.

As dúvidas me afogavam. Voltei para casa, mergulhado em pensamentos desconexos.

Tomei uma ducha para lavar meus escombros, alimentei o gato, abri uma garrafa de conhaque e sentei-me na mesa da cozinha com o porta-retratos diante dos olhos. Por quê? Eram as únicas duas palavras que rodopiavam em minha mente.

Farol subiu na mesa com suas patas de algodão e ficou me encarando. Achei que sentia falta da dona. Fiz menção de me levantar. Em um movimento típico, ele derrubou o porta-retratos de cima da mesa. O vidro se espatifou e a moldura quebrou. Empurrei-o para longe dos cacos.

Recolhi os pertences despedaçados de Dona Miriam. Um papel, incrivelmente intacto, estava colado à foto. Em nome de Miriam, encontrei um documento que comprovava a colocação para adoção de uma menina. No verso, escrito com letra trêmula, um pedido de desculpas.

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Carol Canabarro

E-mail: carolinecanabarro@gmail.com

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