Porto seguro


Carol Canabarro

Ele não é de dar abraço demorado, beijo grudento ou fazer longas e emocionadas declarações. Era assim antes de eu chegar e continua até hoje. O que não significa que não é afetuoso, só tem jeitos peculiares de demonstrar carinho. Imagino que ter o Seu Júlio como modelo dificultou um pouco as coisas.

De criança, lembro bem da gente, um de frente para o outro, com as mãos dadas. Eu “escalava” suas pernas e ele, com os joelhos, me impulsionava para dar cambalhotas entre seus braços. Nesses momentos, sem perceber, me mostrava que eu podia fazer o que quisesse, desde que não faltasse coragem e confiança. Em mim e nele.

Nunca me bateu. Mentira. Quando eu tinha uns 8, 9 anos, me mandou tomar banho. Demorei, mas fui. Fiquei debaixo do chuveiro um tempão. Abusei da sua paciência. Saí do banheiro com a sola do Rider impressa na minha bunda magricela. Doeu, ardeu até, mas a cena foi tão engraçada que a gente chorou e riu ao mesmo tempo. Precisamos só dessa experiência para estabelecer nossos limites.

Mas ele precisava educar, assim, criou nova tática: se eu ou meu irmão saíssemos da linha, entregava um caderno grosso, caneta e nos mandava escrever X vezes “não devo blá blá blá”. Quando reincidíamos no erro, a pena dobrava. O Leco tentava passar a perna nele, escrevendo primeiro os “nãos”, depois os “devo” e assim por diante. O traçado na folha o delatava e a multa crescia proporcional a tentativa de golpe. Eu, não ousava enfrentar seu lado racional, pegava outro caminho: fingia dormir de exaustão em cima das folhas incompletas e ganhava habeas corpus. Minhas irmãs, Luli e Laura, receberam a versão light. Em alguns casos, amolecer é mais fácil do que quebrar.

Numa espécie de cabo de guerra só de vencedores, crescemos. Ele, com uma mão, arrancava nossos dentes de leite com alicate e, com a outra, nos ensinava a não comer porcaria. Refri? Bolacha recheada? Nada. Aqui é suco e verdura. Para os adultos, claro, caia bem uma cervejinha. Eu ficava só observando.

Inteligente acima (bem acima) da média, dono de um humor ácido e lógica afiada, tenta, desde sempre, me ensinar matemática e física. Juro que me esforço, mas minha veia literal marca contra. Acabamos transformando os absurdos que digo em piadas e textos.

Às vezes, recordo quando saia do colégio e ia encontrá-lo no centro. A gente almoçava, depois tomava um cafezinho - sem açúcar, passeava na Casa de Cultura ou na Livraria do Globo. Aos novembros, época de Feira do Livro, éramos - somos até hoje - figurinha gasta.

Lá no começo da década de 90, ele comprou meu primeiro broche do PT. Insisti para ter um, depois de me ensinar o que era Orçamento Participativo. Não sei se tinha mais orgulho do Olívio Dutra, de Porto Alegre ou do meu pai por compactuar com essas ideias. Em 2022, fomos para as ruas de novo. Ao seu lado, aprendi a caminhar “mais para esquerda” da vida – apesar da gente tropeçar e se desiludir vez ou outra.

Desde sempre me empresta seus livros. Quase nunca devolvo. Roubo mesmo. Gosto de aprender por suas trilhas. É meu jeito de demonstrar que o admiro e que quero parecer mais com ele. Temos até um pacto silencioso: eu não preciso devolver o que furtei, desde que preencha os buracos de sua biblioteca com livros escritos por mim. Nossos jogos são sempre de ganha-ganha.

Foi ele também que me “forçou”, quando adolescente, a não adquirir um plano anual na academia do bairro e, depois de adulta, a entrar na universidade federal. Na primeira fiz birra, na segunda nem relutei. Seus conselhos sempre foram precisos e preciosos. A academia perto de casa fechou em menos de seis meses. Eu me graduei na UFRGS.

Das lições que ensinou, uma é especial. Em um momento de muitas dúvidas e medos, procurei seus conselhos. De tudo o que poderia ter dito, escolheu: “a gente não precisa ter muitos motivos para fazer algo, precisa ter um só: precisa fazer o que nos faz feliz”. Mantenho o aprendizado emoldurado em diamante dentro da cabeça.

Nele, tenho meu primeiro e mais crítico leitor, meu mais firme e constante porto seguro. Uma das pessoas que mais admiro – não só por seus grandes olhos verdes, mas por ter me preparado, dentre muitas coisas, a ser destemida.

Meu pai tem lá suas limitações (defeitos, muito embora não os chame assim), mas é o melhor pai que eu poderia ter. Se me dessem outro, vendia e passava a vida juntando dinheiro para comprar de volta o Roberto.

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Carol Canabarro

E-mail: carolinecanabarro@gmail.com

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