Salvamos muitos, não todos


Carol Canabarro

Torci para que Benício me reconhecesse. Meu receio não estava no uso da máscara e do macacão hospitalar. Depois de meses no laboratório, já tínhamos aprendido a nos identificar por trejeitos, pelo timbre da voz e pelo olhar. Eu temia que ele não pudesse mais me reconhecer.

Fazia quase um ano da nossa vinda para Oxford. Era parte do nosso juramento e, como chefes do departamento de infectologia na FioCruz, era também nossa missão. Benício deixou sua esposa, a também infectologista, Dra. Mônica; eu deixei dois gatos e, juntos, deixamos os amigos e o país. Tínhamos o único e desesperado objetivo de colaborar para cura da doença que dizimava o mundo.

Atravessei a cortina, cheguei perto do leito e toquei a mão, não do renomado Dr. Benício Rodrigues, mas do meu melhor amigo. O látex não me impediu de sentir o sangue de lava correndo em suas veias.

— Conseguimos, Benício. Meu amigo, nós conseguimos. – As lágrimas embaçaram minha máscara de plástico.

Ele contorceu as bochechas até apertarem a lateral dos olhos. Foi o mais próximo de sorriso que pôde. O tubo que descia por sua garganta e chegava até os pulmões, mesmo depois de retirado, o impossibilitou de dizer: “eu sempre soube”. As três morosas piscadas falaram por si.

Benício soltou minha mão e rabiscou um papel invisível no lençol. Acorri, entregando papel e caneta reais. Com letras infantis e tremidas, ele mais desenhou do que escreveu. Eu podia prever as palavras antes mesmo de aparecerem por completo. Rabiscou “feliz”, seguido de “em paz”. Depois, pediu mais papel e escreveu “P/ Mô”. No verso da folha, registrou suas últimas palavras.

Voltei para o Brasil no dia seguinte, o corpo de Benício não pôde ir comigo. Retornei ao país com a cura e com uma carta que não gostaria de ser portador. Do aeroporto, segui direto à universidade. Meus gatos podiam esperar. Na chegada, alguns poucos e selecionados colegas me esperavam no saguão. Senti falta de Mônica. Perguntei por ela e me indicaram onde encontrá-la no hospital.

Coloquei mais uma vez o macacão, máscara, luvas e fui até o setor em que minha amiga estava. Abri as cortinas, arrastei os pés até ela e, com a máscara embaçada, pousei a carta de Benício em suas mãos unidas ao peito e geladas.

voltar

Carol Canabarro

E-mail: carolinecanabarro@gmail.com

Clique aqui para seguir este escritor


Site desenvolvido pela Editora Metamorfose