Depois do fogo


Carol Canabarro

Os gritos subiram as escadas mais rápido do que as labaredas e mais lentos do que as paredes de fumaça. Cada cadeira, cada livro, cada volta do timbre no papel havia sido escolhido por mim e, em minutos, não sabia me localizar entre os móveis do escritório. Rastejando, tateei e encontrei o vidro temperado. Por que não as fiz com aberturas? Meus pulmões secaram e todas as luzes do mundo se apagaram.

- Doutor Leonardo? Doutor Leonardo o senhor pode me ouvir? – foi o último som que escutei, enquanto ela descolava minhas pálpebras.

Para recuperar minha pele chamuscada, fiquei meses em coma induzido. Acordei com as gotas de chuva implorando para entrar pela janela. Ela estava sentada ao meu lado, cabeça recostada na parede, um livro deitado no colo, a boca entreaberta. Meus pensamentos latejavam. Fazendo força para mover uma âncora, mexi dois dedos da mão esquerda. Foi mais do que o necessário.

- Oi?

- O..i... – O gosto de fuligem emperrava minhas palavras.

- Tive medo que meu primeiro resgatado não sobrevivesse. Meu nome é Beatriz. – Reconheci sua voz.

Puxou a poltrona para perto do leito, tocou a pele amarrotada do meu braço como se fosse seda e respondeu todas minhas perguntas sem que eu as precisasse pronunciar. Contou-me que incêndio começou na lancheria do térreo e tomou todos os andares pela tubulação do ar condicionado. Tal qual um relatório, descreveu a maneira que se esgueirou para chegar até meu escritório e, com o rosto baixo, revelou sua sagacidade em usar uma escultura de mármore para arrebentar o vidro e me salvar.

Nos seus dias de folga, decidiu fazer vigília em meu quarto, quando soube que eu não tinha família. Assim justificou sua primeira visita, as outras eram por me querer vivo, ou por ser ela mesma órfã. E me teve, mas não chegou a salvar-se por completo da solidão.

Eu era seu conto de fadas as avessas. Mais avesso do que podia imaginar. Depois de minha alta, acumulamos jantares, shows e domingos na praia, feito impostos. Ter subvertido o sistema nos aproximava, ela uma capitã do corpo de bombeiros, eu um preto bem sucedido na advocacia tributária. Parecia promissor, mas não o suficiente.
Feito línguas de fogo, ela lançava-se em minha direção. A gratidão me empurrava para seus braços, enquanto minha aflição em não conseguir retribuir seu afeto, me fazia quase desejar ter permanecido naquele escritório. O amor tem muitas faces, mas nenhuma máscara. Eu precisava colocar aquelas palavras para fora mais do que o ar para dentro.

O sol já começava a ceder passagem aos cobertores da noite, quando nos encontramos na beira da praia e sentamos na areia. Eu não tinha perguntas, só respostas e, novamente, não precisei dizer palavra. Ela espremia o canto dos olhos, friccionava seus dedos feito quem brinca com um terço e olhava através de mim. Foi a primeira vez que meus braços correram para os seus e ela, como carvão molhado, os repeliu.

Nos próximos trinta anos, Beatriz arrumaria a lapela do meu terno de casamento, se tornaria madrinha do meu primeiro filho, eu lhe daria um gato no seu aniversário de 40 anos e, mais tarde, na festa de aposentadoria da corporação, faria parte da homenagem por ser seu primeiro resgatado.

Tudo porque, naquela tarde, sob um céu de veludo, decidimos salvar, e viver, o que foi nosso amor possível.

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Carol Canabarro

E-mail: carolinecanabarro@gmail.com

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